O discurso sobre o holocausto é marcado pelo qu...o discurso sobre o holocausto é marcado pelo que se pode chamar de topos do indizível, quer dizer, a ideia de o que sucedeu aos judeus europeus foi tão brutal, singular e inesperado que não temos palavras para expressá-lo. o topos do indizível, supomos, deriva de uma noção consagrada de trauma, que o toma como excesso. neste projeto, não pretendo propriamente rejeitar rssa definição, mas relativizá-la. meu objetivo último é indicar que essa referência ao excesso deve ser dialeticamente articulada ao seu exato oposto: uma falta. para tanto, vou primeiramente invocar a obra de primo levi. como se sabe, o escritor judeu italiano propõe o conceito de zona cinzenta, por meio do qual designa um conjunto bastante heterogêneo de prisioneiros que, no lager, subsistiam entre os nazistas e os chamados muçulmanos, isto é, os prisioneiros que eram imediatamente destruídos pela violência contra eles perpetrada. a zona cinzenta era habitada pelos kapos e outros internos que venderam abertamente suas almas aos inimigos. mas ela também compreendia pessoas como o próprio primo levi: homens e mulheres que, na luta desesperada pela sobrevivência, deram pequenos golpes ou aceitaram ínfimos privilégios. como primo levi assevera, aqueles que viveram na zona cinzenta foram certamente vítimas de crueldades atrozes, mas, no fim das contas "não tocaram o fundo". só os muçulmanos o fizeram. quase todos os sobreviventes emergiram da zona cinzenta. suas memórias estão afetadas por essa condição: elas, por assim dizer, são cinzas também. o que pode ser lembrado pelos sobreviventes é o que foi vivido por eles. mas esses eventos estão indelevelmente constituídos por aquilo que sucedeu aos muçulmanos. no campo, o sobrevivente escapa sempre às custas de alguém que morre em seu lugar, e tudo que ocorre a este último resta - como um enigma radical, cono uma falta, como um não-evento - no coração do que aconteceu ao sobrevivente e pode ser por ele relatado.o holocausto é um evento traumático - talvez o evento traumático por excelência. isso significa que refletir sobre ele é uma via privilegiada para que se possa refletir sobre o que é exatamente um trauma (e o que é uma experiência, se tivermos em conta que o trauma é um caso-limite das experiências em geral). primo levi, em seus livros, ensina que o traima não resulta apenas de um excesso mas também de ums falta. sua memória - o testemunho do sobrevivente - é permanentemente assombrada por algo análogo ao walt whitman escreveu acerca da memória da guerra civil americana: o núcleo duro dela está "enterrado nas tumbas, na eterna escuridão".